· sociedade · 7 min read
Você nunca vai entender o que eu falo, porque eu não falo pra você
Será que existe discurso sem ideologia? Será que as coisas que eu falo fazem as pessoas se auto-sabotarem? Será que as coisas que eu falo estão levando as pessoas para uma "bad trip"? Um texto reflexivo sobre as minhas falas em redes sociais, conselhos profissionais e outras formas de espalhar o que eu penso.
Esses dias eu tive que ler que eu estava errado em me expressar da maneira como eu falo na internet. A bronca veio porque, segundo a pessoa que me repreendia, eu não pondero as coisas que falo; levando as pessoas a tomarem péssimas decisões pessoais e entrarem em “bad trip” de auto-sabotagem por causa do meu “discurso ideológico”.
Eu achei estranho essa colocação, pois a pessoa que comentou aparentemente está muito bem colocada no mercado como diretora de empresa e fundadora de outra… Mas, pra mim, qualquer pessoa mais estudada em um cargo de diretoria de uma empresa deveria saber que não existe ser humano sem ideologia e que tudo o que falamos está carregado disso o tempo todo.
Fiquei pensando se o que ela dizia foi por ingenuidade, em acreditar que dá para separar o indivíduo de sua ideologia, ou somente por mau-caratismo mesmo, como alguém que deseja iniciar uma narrativa para depois invalidar sua fala baseado nisso, como colocar um espantalho na sala e falar que o que você faz é porque existe esse espantalho, não por qualquer outro motivo.
Refleti por diversas horas como eu poderia responder aquela pessoa, mas não me veio nada a mente. Senti que nada do que eu dissesse, poderia mostrar para aquela pessoa a realidade da qual eu falo e para quem eu falo quando abro minha boca em uma live, faço um “post/tweet” ou publico um texto aqui no meu blog.
Então eu cheguei a reflexão que coloquei neste texto hoje, na qual eu tento deixar mais claro para você que me lê para quem eu falo quando gero meu conteúdo e qual o impacto que isso realmente causa na vida delas.
Algo que eu gosto de deixar claro para as pessoas as quais eu presto mentoria é que eu não estou aqui para vender sonhos para ninguém. A área de programação realmente paga bem, tem ótimos benefícios e muitas oportunidades; eu sou resultado da mudança social possibilitada por trabalhar com isso.
Porém o meu sucesso não é garantia do sucesso de ninguém. Aquela conversa de “a favela venceu” é só meme mesmo, pois os meus irmãos e outros parentes, amigos e amigas continuam vivendo a mesma realidade que nós vivemos quando criança, a diferença é que agora eles são os adultos que não estavam por perto enquanto nós crescíamos.
Outra coisa muito importante quando falamos sobre trabalho e profissões é que nenhuma delas vai garantir o salário e benefícios que temos hoje para o resto de nossas vidas (talvez sim, se tivermos muita sorte). E o futuro da nossa profissão é o mesmo de qualquer outra: a precarização. Hoje nós estamos muito bem, mas a grande realidade é que qualquer empreendedor ou grande investidor está o tempo todo maquinando sobre como reduzir o custo operacional, para aumentar o lucro no final do ano fiscal. Seja mandando gente embora, deixando um fazendo o trabalho de dois, ou contratando pelo menor salário possível. E depois ainda vão jogar na nossa cara que “nos pagam muito bem”, mesmo sabendo que estão pagando o mínimo que conseguem.
E eu não estou falando que existe um vilão na história. Nós nascemos neste sistema onde a vida de outro ser humano é transformada em recurso para geração de lucro. A realidade é essa, a gente enxerga a realidade e convive com ela como dá.
Pensando em fazer com que a realidade dos meus seja um pouco diferente, eu trabalho para levantar o máximo de informações sobre possíveis cenários para as nossas vidas profissionais e com essa informação a pessoa pode tomar uma decisão mais assertiva para construir seu futuro.
Eu não dou conselhos, só trago informações que talvez a pessoa não conheça por falta de experiência, pouco estudo ou qualquer outro motivo que a trouxe até mim. E, o tempo todo, eu tento reforçar como a realidade da vida é cruel quando não nos planejamos e nos deixamos levar pelo discurso do “somos todos iguais”, “todos temos as mesmas oportunidades”, “se você pensar de maneira positiva sua vida será melhor”.
Falando assim, pode parecer que eu levo negatividade para as pessoas, mas muito pelo contrário, eu as ajudo a planejar melhor suas carreiras enfrentando os cenários mais caóticos possíveis e não caindo em conversa fiada de coach de internet. E, mesmo se eu falasse de maneira mais direta e realmente negativa, com quem você acha que eu estou falando, meu querido amigo virtual?
Para as pessoas que eu falo, lembrar a elas de que a atual relação de trabalho entre empregado e empregador não é uma relação justa, não é nenhuma novidade e não tira delas a vontade de trabalhar por um futuro melhor.
A maioria das pessoas para quem eu falo mora à 3 horas ou mais de distância do emprego, pega 3/4 conduções para chegar no trampo e mesmo assim já levou bronca do patrão, que mora a 1 horinha do escritório, depois de atrasar 10 minutos para bater o ponto. A maioria de nós já teve patrão postando foto da piscina do condomínio, enquanto nós estávamos no escritório porque ele quis que a gente entregasse mais rápido algo que nem estava planejado ou produzisse mais pra ter um relatório bonito para mostrar para os investidores na próxima reunião, pra depois receber as horas trabalhadas como “bancos de horas”. Ah! Sabe quando nós vamos poder tirar os dias do “banco de horas”? Quando o patrão quiser, não quando nós precisarmos.
As pessoas que vem da mesma realidade que eu também não acredita em meritocracia, porque já vimos o filho do patrão das nossas mães, que é empregada doméstica (igual a “moça que limpa sua casa” e você não quer registrar a carteira de trabalho), conseguir um ótimo emprego na firma do pai ou mesmo em postos de trabalho muito bem colocados porque o pai é amigo de algum diretor da empresa. É a famosa “meritocracia por herança”.
É muito engraçado que rico falando que pobreza não aguenta 14hs de trabalho não gera tanta comoção quanto eu falando que a relação entre empregado e empregador é injusta e que meritocracia é ferramenta de manipulação para convencer o pobre de que ele se esforça pouco e por isso que ele vive a realidade que tem.
Eu nunca vi nenhum dos que me criticam levantando a voz (ou teclando) contra alguém que fala que o pobre não consegue melhorar de vida porque é preguiçoso. E você sabe que nenhum dos que falam isso suportaria o esforço que fazemos pelo salário que o patrão quer pagar pelo nosso trabalho. Afinal de contas, quem diz o que é “justo” a ser pago para o funcionário é o empregador, não quem vai executar o trabalho. Mas a maioria não faria o que o pobre faz pelo salário que recebe.
Enfim, quando eu falo, eu não estou me direcionado para você, indivíduo que não sabe o que é morar em um barraco de madeira, pisar no esgoto quando está indo pra escola, não ter asfalto na rua e sempre se sujar todo indo pro trabalho quando chove, ter sua sensibilidade tão destruída pela realidade que não liga para os corpos caídos no chão enquanto você joga bola, dividir quarto, as vezes a cama, com os irmãos, crescendo sem privacidade e individualidade, não ter contato com seus pais porque eles não tem tempo nem pra te colocar para dormir, passar mais tempo no transporte público do que descansando para o próximo dia, querer mudar de vida, mas não ter o mínimo disponível para que isso seja possível.
As pessoas de onde eu venho, não se abalam quando eu converso com elas sobre a realidade. Elas enfrentam a realidade todos os dias, porque não tem outra opção.