· sociedade  · 7 min read

Nos perdemos

Em algum momento de nossas vidas, nós nos perdemos. O ódio, o preconceito, o radicalismo e o extremismo ganharam e nós perdemos nossas famílias, amigos e relações em comunidade.

Éramos uma família de 4 filhos de uma mulher preta, mãe solo, morando em uma quebrada igual qualquer outra por aí. História mais repetida nesse país do que as horas do dia. Até os meus 7 anos éramos muito próximos.

Dessa época, me lembro de poucas coisas… Do desenho feito pelo irmão do meio, que eu copiei colocando uma folha por cima e me mostrou que eu era capaz de desenhar (desenhar seria uma das paixões da minha vida); do uniforme do Santos dado pelo irmão mais velho, time que eu torci até os meus 18 anos (ou um pouquinho mais); da televisão chegando em nossas vidas e virando motivo de briga entre eu e a irmã, que queria ver Malhação e eu assistir a TV CRUJ, da fita cassete verde do Rei Leão comprada na feirinha, do Super Nintendo, que chegou pouco antes da gente se separar, mas era um pilar de união entre todos nós jogando Street Fighter ou Mortal Kombat.

Pouco tempo depois, eles se tornam adultos, morando sozinhos, sem eu e minha mãe por perto. Iríamos para longe, inicialmente nem tão longe, mas já foi suficiente para diminuir muito nossas interações. Logo em seguida a distância aumentaria de 3km de distância, para 457km, o que faria com que as únicas conversas trocadas fossem poucas palavras pelo telefone ou notícias que minha mãe trazia.

Lembro como ontem da notícia de que minha irmã estava grávida, seria o meu terceiro sobrinho. Pra mim não fazia diferença, eu nem tinha idade para entender no que isso mudava nossas vidas. Mas eu vi o quanto mudou quando meu irmão do meio foi preso. Do choro da minha mãe até os dias de visita que nunca me deixaram ir; lembro de tudo. De longe eu ficava sempre informado. Acidentes de moto durante o trabalho como motofretistas e os pinos nas pernas, das namoradas, do namorado, as situações difíceis que minha mãe ajudava de longe, de outra sobrinha que viria, de um casamento que nos faria vir do interior… Talvez eles nem saibam que eu tinha tanta informação ou de que eu estava ligando pra isso sendo um moleque de pouco menos de 10 anos.

Nós nunca fomos tão unidos como algumas famílias que eu vejo por aí, pois a distância física era um impedimento para os churrascos de final de ano ou aqueles presentes do natal. Hoje, aos meus 31 anos de idade, não me lembro de ter comemorado meu aniversário com meus irmãos em nenhum momento da minha adolescência. Mas isso nunca foi algo que nos afastou como família. O amor sempre foi maior do que qualquer distância.

Quando voltamos do interior, me vi unido com eles de novo. Festas em família, um café com minha mãe e eles por perto. Mas a distância que eles tiveram dela pode ter feito uma falta muito grande no que aprenderam com a vida.

Ela, mulher guerreira, brigou com tudo e com todos pela nossa felicidade; trabalhou, não só em um, mas em vários empregos ao mesmo tempo para nos proporcionar o máximo que conseguiu. Ela sempre foi contra qualquer tipo de preconceito e me dava longas broncas caso percebesse isso em mim. Religiosa desde sempre, me ensinou a não ser fanático e me falava sobre o amor de Cristo, me ensinou que amor é o que muda as vidas, não dogmas ou doutrinas. Feminista sem estudo para entender o que significa posicionamento político, ela me ensinou que lugar de mulher é onde ela quiser, que eu teria que lhes respeitar e a falta de respeito que eu tivesse com qualquer mulher poderia me custar um dente ou mais. Ela também me ensinou que eu não precisava namorar com uma mulher se eu não quisesse e que isso não me faria menos filho dela do que os outros. Mas talvez ela não tenha tido tempo hábil para ensinar isso para eles.

Não demorou muito para, em nossa volta para perto, eu perceber que minhas ideias não batiam com as deles. Eu queria que as pessoas pudessem ser quem são, eles queriam que os seus filhos jamais se tornem pessoas LGBTs. Eu queria a distância da violência que eu vi a vida inteira através dos meus amigos, eles queriam mostrar como eram viris e soberanos através da violência na fala, no estilo de vida e com seus filhos. Eu aceitava quando cometia um erro e tentava conviver com isso, eles diziam que foi o diabo e se livravam de qualquer culpa que lhes poderia fazer mudar. Eu busquei me libertar, eles se prenderam no preconceito.

Em 2016, pouco tempo depois da minha volta em suas vidas, vi o preconceito quanto a uma mulher no poder, quando o ódio por um partido político trazia para a mesa do almoço as piores coisas que alguém poderia dizer sobre uma mulher. Em 2018, vi a consolidação de tudo o que eles não aprenderam com a minha mãe se tornar público através do apoio e aceno ao fascismo que se fazia presente através do apoio a uma candidatura presidencial. Até mesmo campanha no grupo da família no WhatsApp eu fui obrigado a ver. Mas 2018 eu aceitei. De 2016 até aquele ano, eles estavam sendo bombardeados de notícias falsas que reforçavam seus preconceitos e trazia viés de confirmação para as suas ideias mais impossíveis de teorias da conspiração. Da mamadeira de piroca até o ódio a Pabllo Vittar, que, quando passava na televisão, fazia meu irmão mais velho se retorcer de ódio na cadeira, eu aceitei que eles só estavam sendo enganados. Mas em 2022 tudo muda.

Nesse ano, o motivo do voto é a identificação. Mesmo depois daquele que eles diziam que seria a solução para todos os problemas do Brasil ter deixado nosso país ao relento quando disse que a pandemia de COVID-19 era só uma gripezinha. Mesmo depois dele ter zombado da forma como as pessoas morriam sem ar e saber que nós perdemos muitos familiares por causa disso. Mesmo com o almoço ficando muito mais caro, o leite da criança estar quase sendo trocado por água com açúcar, igual quando eu era criança. Mesmo com todos os crimes de corrupção cometidos, expostos e os escondidos por um sigilo de 100 anos. Mesmo depois de tudo isso, agora a campanha é ainda mais forte.

Isso porque agora eles votam por se identificar com essa figura, não é mais só pra não votar no outro partido, não é sobre ser contra “os vermelhos”, eles realmente querem o projeto de governo que este indivíduo defende. Com liberdade para o preconceito, machismo, homofobia, racismo, autoritarismo, armas nas ruas, a perseguição religiosa e o ódio sendo incentivado e tudo aquilo que eu aprendi a não gostar. Realmente, fez muita falta a nossa presença em suas vidas.

Independente de qualquer cenário ou partido político no Brasil, nós já perdemos, pois nós nos perdemos. Perdemos nossos familiares para a falta de atenção do líder do país, nosso poder de compra pela inação de alguém que não liga para o povo passando fome, nossa possibilidade de ter uma boa educação e saúde através do desmantelamento do que nos manteve vivos até hoje, nossa segurança quanto a democracia com polarização política que faz com que pessoas matem por causa do seu político de estimação. Mas, acima de tudo, eu perdi meus irmãos, que defendem a família, mas não a deles, a do Jair.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Mamadeira_de_piroca

https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2022-09/bolsonaro-critica-politicos-que-mandaram-ficar-em-casa-na-pandemia

https://www.cnnbrasil.com.br/politica/veja-os-crimes-imputados-a-bolsonaro-no-relatorio-final-da-cpi-da-pandemia/

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