· sociedade  · 15 min read

A ascensão social é uma fantasia: sobre ser um estrangeiro trabalhando em tecnologia

Uma reflexão sobre como mesmo uma pessoa em ascensão social pode não se sentir em casa em diversos momentos de sua vida e talvez nunca sinta que realmente pertence onde chegou. Um papo reto sobre os símbolos de poder que nos cercam e nos colocam em um lugar de estranheza, como se fôssemos estrangeiros estando onde não somos bem vindos.

Este texto é fruto de várias reflexões que tive depois de ouvir um podcast sobre ascensão social. Durante dias eu pensei sobre como me sinto na área de tecnologia, como é a minha vida hoje, como pessoa de classe média, como foi minha vida até aqui e como eu não me sinto em casa, mesmo na minha casa.

Como coordenador de um movimento social, o perifaCode, educador social e voluntário do Núcleo de Tecnologia do MTST, eu tenho acesso a muitas histórias e a uma realidade do país que muitas pessoas não conhecem e isso me coloca em conflito com a minha existência dentro de alguns ambientes e práticas. Durante a leitura, você vai entender o que eu digo quando não me sinto em casa onde eu estou e toda a reflexão que me trouxe até essa escrita.

Se você é uma pessoa periférica que trabalha ou acabou de entrar na área de tecnologia, espero que este texto te encontre bem e que o meu desabafo possa servir para que saiba que não está sozinho por aqui.

O link para o episódio do podcast e todas as referências estarão no final do artigo.

Introdução

Quando criança, cresci em casas inacabadas. Do lugar mais antigo que eu me lembro havia a represa Billings no meu quintal e a avenida na porta da cozinha de casa. Ao chover, a água da represa invadia o quarto, onde eu dormia com minha mãe e meus irmãos e, na maioria das vezes, precisávamos correr para não perder nossas roupas ou móveis. Em momentos de conflitos entre policiais e/ou traficantes locais, as pessoas se escondiam atrás de um poste na janela da cozinha para trocar tiros com seu alvo.

Pra mim, era tudo festa. Eu jogava futebol no campinho que tinha próximo do meu quintal, no meio da represa quando ela secava. No final do ano, a mesma avenida que era palco de tiroteio virava um local de festas onde todos se divertiam juntos. A minha infância foi muito bem vivida.

Nessa época eu não sabia o que eram classes sociais. O que é ser pobre? O que é ser rico? Qual a diferença entre ser classe média e não ser? Será que isso faria diferença na minha vida? Eu só tive acesso a esse tipo de debate aos meus 25 anos, quando já trabalhava como programador e conheci pessoas cuja necessidade não era somente de sobreviver ou pagar boletos e por isso tinham algum tempo para conversar sobre outras coisas e, em paralelo, me ensinar sobre o assunto. Isso mudou como eu enxergo o mundo ao meu redor. Parece que foi tirado um cabresto com tapa olho que me fazia olhar somente para a sobrevivência e me colocou para observar a sociedade como um todo.

Mas não foi somente o fato de eu trabalhar como programador e ter acesso a essas pessoas, a partir dali eu também tinha mais tempo para pensar em coisas além da sobrevivência. E, quando eu digo tempo, não estou me referindo as pessoas não terem o que fazer, mas o fato de que a sua energia não precisa ser gasta somente em trabalhar, mas sobra algum fôlego de vida para que ela invista em outras coisas.

Olhando para trás, minha mãe e meus irmãos jamais tiveram esse tempo. Minha mãe trabalhava como varredeira de rua durante a semana, lavava a roupa da vizinhança no sábado e domingo, quando não estava no seu emprego informal, estava fazendo bicos para nos manter. Será que ela conseguiria parar para pensar em como as estruturas sociais funcionam?

Na teoria, chamamos a mudança de vida financeira das pessoas de mobilidade social. Na quebrada, chamamos de crescer na vida. Parte da nossa vida é pautada no que possuímos, onde trabalhamos, quanto ganhamos e isso é algo que influencia diretamente as nossas tomadas de decisão. Se eu não tivesse que ganhar dinheiro, será que eu seria programador ou escritor?

Em 2019 o tema da minha palestra na BrazilJS, uma conferência de tecnologia, foi “Ascensão social pelo apoio das comunidades de programação”, onde eu contei como as pessoas me ajudaram a “mudar de vida”. Eu passei de um moleque pobre, preconceituoso e com inclinação para o fascismo, para uma pessoa que pode escolher onde vai gastar o seu dinheiro, com o mínimo de consciência de classes, que aceita as diferenças e jamais escolheria uma ditadura. Mas, será que essa mudança de vida realmente me coloca no mesmo lugar que as pessoas com quem eu trabalho ou convivo diariamente?

Não pertencimento

A pergunta acima, “será que essa mudança de vida realmente me coloca no mesmo lugar que as pessoas com quem eu trabalho ou convivo diariamente?”, é algo que vem na minha mente desde 2014, quando de fato eu comecei a trabalhar com pessoas programadoras. Pessoas que já faziam parte de outra classe social há algum tempo e/ou que sempre viveram em uma realidade muito diferente da que eu te contei na introdução.

Ao mesmo tempo que você está lá, você nunca pertence ao grupo por completo. A gente participa dos rituais da classe média, mas não conseguimos nos encontrar por ali. Eu não me enxergo na maneira como as pessoas ao meu redor se comunicam, no modo como elas se vestem ou mesmo quando começam a falar sobre sua aspiração de vida ou o seu passado.

Durante a pandemia de COVID-19 eu perdi muita gente da minha família para este vírus e, no meu trabalho, estava ouvindo sobre como o lockdown deveria ser freado para que não atrapalhasse a economia e como as ações dessas pessoas estavam caindo por conta da desaceleração econômica. Sabe o pior? As minhas ações também caíram. Mesmo estando no mesmo local que eles e participando do mesmo ritual capitalista de investimento em ações, eu não sou um deles.

Antes disso eu já não me sentia um igual. Enquanto eu pensava em ganhar mais dinheiro para pagar um convênio para a minha mãe, meus colegas de trabalho precisavam comprar Euro para a próxima viagem internacional. É engraçado, pois eu acabei de tirar meu passaporte, com 31 anos de vida, sem nunca nem sonhar em viajar para fora do país.

Falando em viagens, uma vez me perguntaram sobre qual o lugar mais legal que eu já havia visitado, e eu não tinha resposta para essa pergunta. Hoje eu tenho, foi Manaus. Um dos lugares mais maravilhosos que existe e que eu tive o privilégio de conhecer. A diferença foi que eu conheci Manaus a trabalho, em uma das vezes em que fui palestrar em um evento, não fui a passeio e não tive a alegria de conhecer o lugar como um todo. Até mesmo quando eu cheguei lá, eu não cheguei de fato. Isso me deixa impressionado como a sobrevivência ainda é a única coisa que eu consigo pensar.

Uma vez eu comentei sobre como achei a comida indiana algo fantástico. A resposta do meu colega de trabalho foi que eu deveria conhecer a culinária indiana de verdade, pois o que comemos no Brasil nem se compara. Um dia ele foi para a Índia para o casamento de um amigo de infância que não só gastou para as festividades, mas pagou a viagem e hospedagem de todos os convidados. Ao mesmo tempo que eu entendi o que ele falou, sobre a comida preparada por nativos, com ingredientes nativos, ser melhor, essa pessoa, sem perceber, jogou um caminhão de areia na minha recente descoberta.

Mesmo ao palestrar ou participando de comunidades de programação, eu nunca me senti parte de nada. Foi por isso que nasceu o perifaCode e por isso eu me voluntariei no MTST. Durante as conversas de camarim, eu nunca tinha assuntos para conversar com os palestrantes. Enquanto geral falava sobre coisas como o próximo iPhone que iria comprar ou como MacBook Pro era muito melhor do que Windows, eu estava pensando em o que fazer para nunca perder o emprego.

Até agora eu não entendia o que era isso, o porque de eu não conseguir me sentir parte de onde eu estou, mas as coisas começaram a fazer sentido.

Os símbolos de poder da classe média

Na nossa vida nós temos muitos símbolos ao nosso redor. Símbolos de conquista, como quando um favelado compra uma casa ou quando o cria de favela compra uma moto. Quando eu comprei minha moto, me senti a pessoa mais empoderada do mundo. A partir daquele momento eu não era mais só o moleque de quebrada que conseguiu um bom emprego, eu era o jovem adulto em ascensão social.

A gramática, o falar certinho; quase recitando um artigo, o não falar palavrão, o diploma, o inglês, as roupas de marca, a decoração da casa, os lugares que frequentam, são filhos de quem ou são filhos de ninguém. Tudo isso são símbolos de poder da classe média que nos rodeia.

No meu primeiro emprego em tecnologia, eu precisei comprar calças jeans mais justas, um sapatênis e utilizar a camisa polo, uniforme do trabalho, para poder acessar os clientes da empresa. Antes disso eu trabalhava como ajudante geral, chegava na van da firma com a calça larga, boné dos Racionais e moletom que cobria metade das minhas coxas. No meu segundo emprego em tecnologia, eu precisava andar de sapato e camisa social. No meu terceiro emprego em tecnologia eu já não tinha mais a minha identidade periférica.

Os símbolos ficam cada dia mais claros pra mim enquanto converso com pessoas que se acham ricas por ganhar um bom salário e não se enxergam como pessoas que um dia podem precisar do governo ou até mesmo de um sindicato. Talvez por eu ser de São Bernardo do Campo, SP, eu tenha uma visão diferente do que é um sindicato, mas até nisso mudaram minha mente durante a minha convivência. O ódio ao trabalhador é um símbolo de poder. Se sentir superior e totalmente independente da ferramentas sociais é um símbolo de poder. Nós não percebemos e quando vemos já estamos marcados por eles.

Quando me mudei para São Paulo, capital, morei em um quartinho de empregada. Isso mesmo. Um quarto reservado para as pessoas que viviam nas casas dos ricos dos anos passados. Essas pessoas, além de morar com as famílias a quem serviam em sua escravidão moderna, tinham uma porta de entrada separada. Elas entravam pela cozinha, que poderia ter a porta de acesso a sala de estar trancada, mantendo assim os donos da casa e o pobre totalmente separados, mesmo estando no mesmo lugar.

Hoje, como trabalhador em tecnologia, o que mantém o pobre separado dos verdadeiramente ricos são esses símbolos sutis, que nós nem percebemos no nosso dia a dia. Mesmo estando nas mesmas posições que eles, você nunca vai poder gastar o que eles gastam, viver como eles vivem e ter a tranquilidade financeira que uma herança proporciona.

Nós não gastamos como eles

O crescimento financeiro de um favelado trás com essa pessoa a sua estrutura familiar. Nós não gastamos o nosso dinheiro com a nossa felicidade, gastamos tapando os buracos que ainda nos faltam para conquistar os outros símbolos, como um diploma, um idioma ou um objeto que nos coloque no mesmo patamar.

É como se existisse um poço com vários níveis numerados. Ao se tornar jovem adulto, força de trabalho, e entrar em tecnologia, nós encontramos pessoas que estão no nível 10 e nós, que atuamos fazendo exatamente a mesma coisa que elas, ainda precisamos subir do nível 3 até lá. E, mesmo que você se esforce muito para que as suas próximas gerações consigam entrar em um mercado de trabalho estando também no nível 10, a chance de perdermos tudo é muito maior do que a deles.

Não existe nenhuma proteção a nossa mobilidade social. Se nós perdermos a capacidade de trabalhar onde estamos, a possibilidade de entrarmos em uma crise financeira e perdermos tudo o que temos é muito grande. Enquanto para os outros, é só pedir ajuda aos seus familiares.

Nós não nos locomovemos como eles

Algo que me deixava muito incomodado em encontros de tecnologia, os famosos Meetups, era o fato de que ninguém pensava que um evento começando as 20 horas e terminando as 23 impossibilitava a participação de muita gente.

Um exemplo de evento era na Avenida Paulista, próximo de várias estações de metrô. Você pode imaginar que isso é muito acessível, mas já parou para analisar que a maioria das pessoas utiliza bem mais do que um único meio de transporte para se locomover? Enquanto eles pensavam que estar próximo do metrô era fácil para sair da Vila Madalena e descer na estação Paulista, nós precisávamos sair dali e chegar a tempo de pegar o último ônibus para a nossa casa.

Várias vezes vi organizadores de eventos felizes por organizar encontros perto das suas casas na região da Consolação, enquanto uma parte dos que chegavam até ali moravam à três horas de distância na Zona Leste ou mais ainda em cidades da região metropolitana de São Paulo.

Nós não temos tempo livre como eles

Algo que sempre me incomodou no discurso de pessoas que trabalham com programação é sobre como é “fácil” aprender a programar. O problema desse discurso é o fato de que quem o propaga acredita que estamos todos saindo de uma mesma base. Pode não ser assustador pra você, que cresceu jogando vídeo game em inglês, mas as primeiras palavras reservadas de uma linguagem de programação assustam quem acha que nunca vai conseguir aprender um idioma. Quanto mais entender uma linguagem de programação e um outro idioma ao mesmo tempo.

Quando jovens, a maioria de nós, pessoas periféricas, vive pensando em sobrevivência. Enquanto alguns jogam vídeo game, assistem animês e passeiam com a família, o jovem periférico é quem está te servindo no balcão. Para que você se divirta, a filha da sua empregada doméstica está cuidando da casa e/ou dos irmãos. É essa falta de tempo que gera um abismo de capacidade na hora de aprender tecnologia. Não é nada fácil para a maioria de nós.

Nós não temos o poder de compra deles

A minha primeira conquista rumo a trabalhar com tecnologia foi um computador da marca Positivo com Windows Vista, 2GB de memória RAM, HD de 500GB e processador Celeron D. Pra jogar GTA San Andreas eu tive que instalar o Windows XP e aprender a fazer tuning de hardware e software, pois eu não tinha grana pra colocar mais memória, trocar o processador ou comprar uma placa de vídeo.

Essa era a realidade de todos os meus amigos, tirando aqueles que nem computadores possuíam, e nós já estávamos com 17 anos de idade. Muito diferente daquele programador que aprendeu a programar aos 8 anos de idade, quando um computador custava o preço de uma casa, mas seus pais tinham renda suficiente para possuir um ou até dois.

Enquanto isso, eu lia um blog onde pessoas desenvolvedoras de software compartilhavam o seu “setup” e a maioria deles tinha um MacBook, iPhone e fones de ouvido com bloqueio de ruídos que valiam o meu computador, meu celular e metade dos bens que eu e minha mãe possuíamos.

Nós não moramos como eles

Seguir seus ídolos nas redes sociais é algo que vai mudar a sua mente. Pode ser bom ou ruim, vai depender de o quanto você consegue se desconectar de algumas situações. No meu caso, algo que me chamou atenção ao seguir as pessoas que palestram e geram conteúdo em tecnologia, foi o minimalismo e a decoração das casas.

Eu não sabia que existia um nome para isso, mas descobri depois que essa galera poderia ser chamada de santacecilers. Uma belíssima decoração, com tudo muito bem harmonizado, fechando com uma planta (ou várias), tudo milimetricamente planejado. Enquanto isso, do outro lado da realidade, eu me encontrava em uma casa que nem o lado de fora possuía acabamento.

Pode parecer besteira, mas a primeira vez que eu morei em um lugar com acabamento foi aos meus 25 anos de idade, trabalhando como programador. E foi engraçado; nos anos que morei neste lugar, eu não mudei nada. As paredes continuaram brancas como quando cheguei, a iluminação continuou a mesma, a decoração não mudou. O fato de pensarmos em decoração também mostra o quanto a nossa vida está estabilizada e não estamos imersos em outros problemas.

Nós somos estrangeiros trabalhando em tecnologia

Você pode estar pensando “mas você se sente mal porque fica se comparando com outras pessoas”. Não. Eu não ligo para as outras pessoas. Este texto é uma reflexão sobre pertencimento. Sobre se identificar com o espaço que você frequenta.

Eu não me vejo na minha profissão. É muito difícil encontrar outras pessoas que tiveram uma vivência parecida com a minha por aqui. Hoje eu também não me vejo no lugar onde eu moro, pois é ainda mais difícil encontrar essas pessoas morando por aqui.

Eu tô muito mais perto do zelador, do porteiro ou do entregador de aplicativos do que da classe média que ocupa o prédio onde eu moro. Eu não pertenço a esse lugar, sou um estrangeiro em um espaço que não foi me dado e nunca será fácil permanecer aqui. Os olhares são diferentes quando eu abro a boca e falo em gírias ou quando ando com a calça larga e o boné com escritas que eles não entendem.

Às vezes me pego pensando: será que a pessoa que está abrindo o portão pra eu entrar conseguiria morar em um apartamento como o meu? Será que a pessoa que serve o meu prato no restaurante no centro conseguiria se alimentar como eu?

Assim como os antigos migrantes vinham para São Paulo para conquistar o mínimo, estou eu aqui hoje, fazendo exatamente a mesma coisa, só que trabalhando com tecnologia e vivendo o hype das profissões do futuro.

Referências

Parasita e a fantasia da ascensão social - Meu Inconsciente Coletivo Ascensão social pelo apoio das comunidades de programação - BrazilJS Conf 2019 O poço Setup - Loop Infinito O homem e seus símbolos, Carl G. Jung A classe média no espelho, Jessé Sousa A elite do atraso, Jessé Sousa O Poder Simbólico, Pierre Bourdieu

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