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Por que existem cursos de programação exclusivos para LGBTs e outras minorias?
Por que existem cursos exclusivos para grupos de minorias como pessoas trans, travestis, negras, mulheres, PCDs? Por que essas pessoas não podem fazer um curso como qualquer outro?
Recentemente compartilhei um curso de programação exclusivo para pessoas trans. O curso da transcendemos, conteúdo gratuito e exclusivo para pessoas trans e travestis. Como era de se esperar, logo alguém me perguntou: “Hein!? Por que um curso exclusivo para trans e travestis, essas pessoas não podem simplesmente entrar em qualquer curso de programação, como eu ou qualquer um aqui no grupo?”.
Estou acostumado com isso, afinal trabalho com diversidade e inclusão desde 2015 e já vi esta pergunta se repetir tantas vezes quanto nós temos vontade de responder. Isso não é nenhum pecado, você não é uma má pessoa por questionar isso. A maioria das pessoas se pergunta o mesmo, só não tem coragem de expor o que pensam. Então pensei em sintetizar o que sei sobre o assunto neste texto para facilitar o nosso entendimento e quem sabe conseguir esclarecer sobre o assunto de cursos exclusivos para minorias sociais.
Para começar, vamos refletir sobre o contexto das pessoas em situação de vulnerabilidade social, depois passar sobre representatividade e enfim concluir nosso raciocínio sobre inclusão. Caso ainda tenha alguma questão sobre isso, pode me chamar nas redes sociais (@1ilhas no Twitter e @1ilhas no Instagram), estou a disposição para ajudar.
O ambiente social é excludente
Para começar a entender o porquê dos cursos exclusivos para pessoas trans, mulheres, pessoas negras, indígenas, PCDs e outros grupos sub-representados, precisamos observar que a sociedade é por si excludente com o que não está dentro do padrão ou que foge do socialmente aceito.
Entenda, existem vários tipos de minorias e isso vai depender também do país onde vivemos. Segundo o portal Brasil Escola, temos a seguinte definição:
O conceito de minoria social diz respeito, nas ciências sociais, a uma parcela da população que se encontra, de algum modo, marginalizada, ou seja, excluída do processo de socialização. São grupos que, em geral, são compostos por um número grande de pessoas (na maioria das vezes, são a maioria absoluta em números), mas que são excluídos por questões relativas à classe social, ao gênero, à orientação sexual, à origem étnica, ao porte de necessidades especiais, entre outras razões.
Não precisa ser algo tão “diferente”, somente o fato de você ser uma pessoa periférica que se veste como gostaria de se vestir dentro de um ambiente onde o padrão é o que você faz, você já vai sofrer algum tipo de preconceito e micro agressões. Veja o caso do Tiago, o Chavoso da USP, um jovem periférico que sofre sim preconceito por se vestir e falar como se sente bem em um ambiente não amistoso: UOL - Thiago Torres o Chavoso da USP.
Esses grupos sofrem algo chamado micro agressões. Pequenos atos de preconceito que acabam infringindo grandes danos à saúde mental e até mesmo à integridade física das pessoas. É comum que uma senhora ou senhor de mais idade troque de calçada ao ver uma pessoa negra que se veste no estilo hip-hop, também acontece o mesmo quando veem uma pessoa trans ou um casal homosexual andando de mãos dadas.
Veja:
- Maioria dos LGBQs sofre microa gressões frequentemente, diz estudo da UFPB
- O efeito das micro agressões raciais de gênero na saúde mental de mulheres negras
- Série impactante mostra as maiores ofensas ouvidas por homossexuais
As micro agressões acabam excluindo as pessoas de grupos sub-representados pouco a pouco até elas não estarem mais em ambientes que deveriam ser de comum acesso a toda a população. Não é à toa que os cursos de tecnologia nas maiores universidades são frequentados majoritariamente por homens brancos de classe média alta. Com o tempo, as pessoas que não fazem parte desse padrão começam a se sentir mal por não encontrar outros iguais, são excluídas e acabam evadindo da graduação (ou do curso técnico ou até mesmo da formação básica escolar).
Na década de 1970, cerca de 70% dos alunos do curso de Ciências da Computação, no IME, eram mulheres; hoje, 15%
Leia: Por que as mulheres “desapareceram” dos cursos de computação?
Entenda, nós somos seres sociais e todo mundo tem a necessidade de ser aceito no ambiente onde está para que se sinta bem suficiente para continuar fazendo o que faz. Seja em um curso, no trabalho, na família ou no círculo de amizades. É por isso que você, assim como eu, vive em uma bolha, procurando grupos de programação onde possa falar sobre isso e não sobre outros assuntos. Se você gosta de futebol, se aproxima de quem gosta de futebol, se curte cinema, se aproxima de quem gosta de cinema, e assim vai.
Porém não é o mesmo com representatividade. Não é só gostar de alguma coisa, é ser algo. Ser uma pessoa trans ou travesti, ser gay, lésbica ou bissexual (como eu) nos coloca um peso de estar em lugares onde você pode receber julgamento por qualquer atitude ou fala. Só pelo fato de você existir ou amar alguém. Se você for uma pessoa hétero sexual, pode refletir que isso nunca foi um peso em uma entrevista de emprego. Você nunca teve medo de falar “eu sou hétero” e perder a oportunidade de trabalho.
Em um ambiente como um curso não é diferente. As pessoas estão ao redor julgando o tempo todo. Não é por maldade, às vezes é uma brincadeira que ela costuma repetir, por outras vezes é algo que os pais falam e a pessoa replica e isso se torna exaustivo para quem é o alvo dessas micro agressões. Quando você faz parte de uma minoria social, já não basta o peso que é correr atrás de uma vida profissional estável, estudos e tudo mais, ainda existe um agravante de simplesmente ser quem você é.
É por essa exclusão natural do convívio social que existe a necessidade de criar grupos onde as pessoas se sintam representadas e que não sejam julgadas ou questionadas por serem como são. Seja mulher, LGBT, negras ou qualquer grupo. Assim, a evasão será reduzida e o impacto social do curso será muito maior.
Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela
Leia: Angela Davis
Não é sobre você
Toda vez que as pessoas que se sentem desconfortáveis com cursos de programação exclusivos para minorias entram em questionamento sobre a necessidade de que todo mundo siga o mesmo caminho que ela seguiu.
Se eu fui pelo caminho onde participei de um curso não exclusivo só pra mim, por que essa pessoa trans, negra, tem esse privilégio?
O ponto é que a exclusividade do curso não é sobre você, meu amigo ou minha amiga. A sua bolha social pode ter algumas vantagens que você nunca parou para reparar, assim como eu, um homem, nunca havia parado para entender porque não tinham mulheres trabalhando comigo até começar a participar ativamente das comunidades de programação.
A necessidade da exclusividade é pela representatividade, nada mais. A pessoa que está em um grupo que te aceita, vai se sentir mais à vontade para tirar dúvidas, se juntar em grupos, ir na casa de alguém para estudar. Ninguém quer sair na sua frente, só quer se colocar ao seu lado, nas mesmas oportunidades de verdade, pois quem está a frente no mercado é você, que não faz parte de um grupo marginalizado.
Assista o vídeo abaixo para entender melhor.
Como homens, nunca tive este problema. Bastava falar sobre futebol e todo mundo virava amigo. Quando se formam grupos, o Clube do Bolinha tá formado e nós excluímos as mulheres sem nem perceber. É triste, mas é uma realidade que nós muitas vezes não reparamos.
Olhe ao seu redor no emprego onde você está e reflita: Quantas mulheres tem em sua equipe? Quantas pessoas negras estão em cargos de liderança? E quantas pessoas trans estão na diretoria da sua empresa? Quantos LGBTQ+ são assumidos na sua profissão?
Cursos exclusivos são sobre necessidades sociais, não sobre tecnologia, nem uma competição.
Conclusão
Espero que, com essas palavras, tenha ficado claro que o grande ponto aqui é a representatividade e a socialização. Ninguém gosta de estar onde não é bem vindo(a) e pior ainda quando é algo que nos traz ansiedade como pensar em futuro profissional.
Daqui pra frente, quando você descobrir um curso exclusivo para minorias, ao invés de questionar, torço de coração para que você compartilhe sobre ele com o máximo de pessoas possível para que as diferenças sociais comecem a diminuir e no futuro não seja mais necessário que existam iniciativas exclusivas, mas que as pessoas sejam bem vindas onde quer que seja.
Ouça o Malabarizando e aprenda também sobre saúde mental: Malabarizando, falando sobre saúde mental para pessoas periféricas.
Curso da transcendemos exclusivo para pessoas trans e travestis
Photo by Delia Giandeini on Unsplash